domingo, setembro 19

Para meu namorado imaginário!



"Eu sei que quando a gente se encontrar, vai ser pra valer. Vai ter aquela troca de olhares, aquela timidez inerente, a gente vai se saber um do outro, mesmo que num futuro. Eu sei que vai ser bonito, sabe? Como é pra todo mundo. Que vai ter familia no meio, defeitos aparentes, que vai ter foto do lado da minha cama, sei que vai ter nome na agenda do celular com caretinha, sei que vai ter toque especial pra você. Sei que vai você vai ser meu motivo pra acordar sorrindo. Sei que, quando estivermos juntos, qualquer problema com você vai ser pra mim que você vai ligar, porque eu que vou te entender, mesmo sem falar nada. Eu não vou julgar, seja lá o que for. Sei que se houver mágoa, a gente vai conversar, ou então a gente vai se odiar, mas tudo que já tiver passado vai ficar. Sei também que vai fazer meu coração bater mais forte, tenho certeza disso. Que eu vou poder reclamar da minha dor no braço e daí você vai brigar comigo, porque eu não cuido direito. E que você vai me perguntar quem são todos os meus amigos. Mas não louco de ciúmes, porque você se interessa pela minha vida e sabe que estando perto deles, você está cada vez mais perto de mim. Sei que não vai ser mil maravilhas, mas eu nem quero que seja, porque pra que vamos lutar um pelo outro? Pra que conquistar, pra que corrigir, pra que perdoar? Também vamos nos descobrir, em algumas tardes, muito iguais em algumas coisas e completamente diferente noutras. Vou querer saber porque seus amigos agem assim com as mulheres, pra que isso? Sei que você vai gostar de ir festar comigo, mas vai gostar de ver meus filmes também, me ouvir falando dos meus livros. Também acho que vai te dar um momento ali que você vai querer fazer o que você quer, e eu vou brigar, mas vai ser pouco, só pra fazer charme. No fim das contas eu vou com você, pra onde você for. Sei que vamos ter música interna, risadas. Que vamos dar inveja. Fazer confusão. Sei, aliás, tenho a mais absoluta certeza disso tudo, que a gente vai se encontrar. Tenho certeza que você existe em algum lugar... mas dá pra aparecer logo?"

O texto acima é de Mariane Micheletto (@nannygmm), uma das ganhadoras do concurso literário promovido há algumas semanas; 

quinta-feira, setembro 16



Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração.
Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa.
Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não.
Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei.
E como quem gira um caleidoscópio, vi:

Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo,
faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria.
Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.

Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água.
Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz.
Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma
letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas,
anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela.
Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se p6os. A lua cheia brotou do mar.
Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.

Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon,
contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.

Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa,
poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera.
Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China.
No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure for you or anyone".
Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria.
A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.

Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado.
Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos
que sempre acabam destruindo tudo.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.

Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo,
transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja.
Levam junto quem me ama, me levam junto também.

Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana,
vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso.
Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração teu.

(Caio Fernando Abreu - Pequenas Epifanias, crônicas)